Os afetos da adultez

Ou: uma continuação da “Crise da adultez”.

Clara Suit
3 min readJul 15, 2022
Disponível aqui.

Quando pensar nos meus vinte e poucos anos, quero lembrar dos afetos que aqui passaram.

Curtos, longos, efêmeros; paixões mascaradas de amor, e amores mascarados de paixão. Outros, simplesmente pelo que são — afetos.

Lembrarei daquele com quem dividi um par de noites regadas a vinho tinto; além de longas divagações sobre a estrutura exploratória dos afetos, a vida, a morte e a psicoterapia. Divagações não predizem química, e duas noites foram suficientes para entender que seríamos melhores como amigos — e talvez exista mais afeto nisso do que se houvesse sido de outra forma.

Lembrarei também dela, a não-monogâmica de humor ácido e sonhos tão grandes quanto expectativas; que me lisonjeou com seu cuidado genuíno e sua cama honesta, sempre disponível para o sonho em par; mas onde deixamos dormir, também, o desejo — com medo da morte da expectativa.

Lembrarei da virginiana centrada de riso contido, que analisou cada detalhe meu com olhos de predadora minuciosa— e a quem muito incomodou a minha imprevisibilidade de signo de ar. Se escondeu prontamente sob algum mecanismo de defesa e acabou intercambiando seus afetos pelo contato esporádico e rarefeito.

Lembrarei dele — que tem jeito de adulto mas que, no fundo, é criança ferida com medo de si; que ficou marcado pelo cheiro de licor de anis misturado com alfazema de farmácia; e chegou a me inspirar mais de um segredismo platônico em formato de poesia. A quem ofereci cuidado e recebi silêncio; e, desta vez, sob a égide dos meus próprios mecanismos de defesa — fugi.

Lembrarei daquele que era “só um colega”; que me estendeu uma mão furtiva, carregada de desejo incomunicado, por debaixo da mesa, durante a cadeira de fundamentos epistemológicos. Que, ao longo de almoços regulares no mesmo dia, horário e restaurante universitário, me ofereceu tudo e nada pediu em troca; e, feito Teresinha, me escondi e me isentei por detrás do rótulo do coleguismo simpático.

Lembrarei da lacaniana séria, que escondia os seus desejos sob os desejos dos outros — e sob o que acreditava serem os meus desejos. Que pediu pouco, pouco lhe dei e com pouco se impressionou. Marcou-se pela dissonância e pelo desencontro: falou de sexo quando eu queria falar sobre Lacan, de arte quando eu queria falar de sexo, de melancolia quando eu queria falar de amor.

Lembrarei dos muitos e muitas que vi uma única vez ao longo desses anos. Como todo encontro singular, guardam em si o potencial do que poderiam ter sido — se tivessem ocorrido em outro momento, em outro lugar, de uma outra forma. Escondem um quê de frustração mágica: no não dito reside o infinito.

Como escondemos os nossos desejos! Os nossos afetos. As partes de nós em prol de um outro — ou do que quer que imaginamos que o outro é e deseja. Os afetos dos meus vinte e poucos anos são marcados não pelos encontros ou desencontros, mas pelas desencontradas interseções de cada um de nós que escolhemos apresentar.

A cada um dediquei um pedaço de mim mesma. Projetei uma parte, uma máscara, uma versão. Um quê da minha jovem adultez e das muitas de mim que descobri ser, em minha breve jornada de boneca russa sobre essa terra.

Em troca esperei — como em toda boa projeção — a reciprocidade do muito ou pouco que dei. Ela, a reciprocidade, que nada mais é do que uma fantasia inexistente do desejo, reforçada pelas narrativas de amor colonizado que nos acostumamos a admirar.

Aos vinte e poucos anos, ensaiei afetos ao lado de meninos e meninas com quem nunca havia encenado — e desbravei o lugar, antes remoto, de ser artista de mim mesma.

Representemos enquanto nos restar texto e personagens para fazê-lo. E, quando já não houver a quem de nós interpretar, quem sabe (já aos trinta?) aprenderemos a amar.

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Clara Suit

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando