Crise da adultez

Clara Suit
6 min readJun 9, 2022

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Disponível aqui.

No outro dia, saí para tomar uma cerveja com uma mocinha que me perguntou:

“Como seria a sua descrição em um aplicativo de relacionamentos?”

E ora, essa pergunta é complicada de ser respondida por diversas razões: o limite de palavras, o contexto em que se localiza, o desejo de conhecer pessoas — misturado com a necessidade de autoproteção de gente estranha, que costuma atravessar nossa experiência enquanto mulheres.

Mas o apresentar-se ao outro, de maneira geral, nos propõe um desafio que é essencial e próprio à construção da identidade: falar de si para o outro implica em conhecer-se o suficiente para escolher, selecionar, afunilar como nos colocamos frente ao mundo. Quem quer que efetivamente sejamos, sabemos que não somos nós o tempo todo. Representamos um jogo de teatro infinito entre persona, ego e sombra que, em vez de arroupar-nos com figurinos, nos desnuda.

“ Vejam, vejam, o rei está nu!” (…) E o rei ouvindo (…) sabia que aquelas palavras eram a expressão da verdade, mas pensou: “O desfile tem que continuar!” E, assim, continuou mais impassível que nunca e continuaram também os camaristas — segurando a sua cauda invisível. (“A Roupa Nova do Rei”, de Hans Christian Andersen - adaptado)

Aos vinte e poucos anos, esse tipo de maturidade identitária é difícil de ser elaborada. É precisamente quando estamos tentando descobrir quem somos, quando exploramos como é trabalhar as nossas personas em diferentes contextos, quando aprendemos a nos proteger com as couraças que vamos moldando na convivência com o externo.

“Como seria a sua descrição em um aplicativo de relacionamentos?”, ela começou me perguntando — e disso já descambei a falar do sexo dos anjos. Esse excesso que me é característico — e que, por vezes, rende bons textos.

Todo encontro despretensioso (como este) começa mais ou menos da mesma maneira — e nem por isso é menor o desafio de se apresentar.

“Ora. Não tenho certeza”, devo ter lhe dito entre uma cerveja e outra. “Acho que estou em desvantagem nessa pergunta. Fui fazer psicanálise quando criança pelo tanto que gostava de falar: como falar de tanto num espaço tão curto?”

Tenho vinte e poucos anos, todo o tempo do mundo, mil versões de mim já vividas e outras infinitas que ainda tenho por viver. Como começo a falar sobre tudo de mim que transbordo pra ser? Como lhe conto em 140 caracteres ou em 1 hora de conversa de bar sobre tudo o que fui e tudo que ainda serei?

Poderíamos começar pelo começo. Pela boa aluna, certinha, organizada que um dia fui. Que chorava quando tirava uma nota abaixo de 8. Que perguntava quando o professor esquecia do dever de casa. Que, mais do que qualquer coisa, só queria orgulhar seus pais. A Clara que ainda me assombra com seu fantasma de autocobrança e perfeccionismo.

A boa aluna é vizinha da Clara que veio para a faculdade para entender que o ser humano é múltiplo, diverso, e só pode ser compreendido em sua totalidade. Essa Clara que ama usar roupas coloridas, ler muitos livros ao mesmo tempo e tomar cerveja com meninos e meninas em noites de sexta-feira como esta. Que chora de dar risada com jogos de mímica, não sabe fumar cigarro e é capaz de se dar bem com absolutamente qualquer pessoa.

Ela é diferente da Clara que mora na rua da frente: uma Clara que transita pelo mundo corporativo, se orgulha em dizer que é uma ótima profissional muito obrigada, viciada em trabalho, que aprecia a segurança do “segunda-a-sexta-de-9-às-18h”, vive preocupada com dinheiro e é extremamente competitiva —principalmente consigo mesma. Ela sonha em sair de casa, tem fome e sede e urge pela sua autonomia e odeia depender de qualquer pessoa.

(ela é a versão da Clara boa aluna que foi atravessada pelo capitalismo e pelo Brasil de Bolsonaro)

As pessoas que conhecem essa Clara nem imaginam que ela é irmã de uma quarta: que usa batom vermelho, dança lo-fi sozinha dentro de casa, é feminista, não gosta de interagir com muitas pessoas e se interessa pelas questões mais profundas e universais do ser humano. Ela costuma encontrar prazer genuíno em pares que a desafiem intelectualmente — mas, na prática, se sente sozinha a maior parte do tempo.

São tantas, tantas e tantas de muitas. Quem sou eu, afinal? Qual seria a minha descrição em um aplicativo de relacionamentos? Ora, mas que pergunta difícil!

“(…) é que sempre sou remota a mim mesma, sou-me inalcançável como me é inalcançável um astro.” (Clarice Lispector em “A Paixão Segundo G.H”)

Sou feita desse existencialismo sartreano em Clarice, do sarcasmo em Machado de Assis, das representações arquetípicas femininas em Isabel Allende e do Romance de 30 em Jorge Amado. Sou uma profusão de palavras de terceiros que elaboram infinitamente melhor do que eu as coisas que me pareceriam particulares. Nelas me escondo, da mesma forma que me escondo atrás das minhas ironias, de falsas timidezes, gestuais, maneirismos… da minha teimosia e da minha ousadia. Escondo o meu desejo de ser amada, o temor primordial pelo erro, a apreensão por não me sentir à altura de qualquer que seja o meu propósito de vida. Escondo-me em outros e nas muitas versões de mim que habito.

Sou apaixonada pelo amor em si. Sou feita da intensidade dos afetos — e deles também tenho medo. Tendo a fugir cada vez que me sinto amarrada a qualquer pessoa, situação ou condição. Além de um medo basal de aranhas, talvez o que mais me apavore seja, efetivamente, ser enquadrada em qualquer caixinha ou nas certezas de um outro abstraído.

Aprendi a temer a intimidade, ao mesmo passo que a desejo. Lacan diz que o desejo é desejo de desejo, e eu me declaro em todas as minhas versões um ser excepcionalmente desejante. E, se isto é sinal de vida, pois eu me declaro tão viva quanto a Morte que um dia se bateu com Cazuza numa esquina.

Alto dos meus vinte e poucos anos, no fundo no fundo eu não sei quem sou nem pra onde vou; tenho uma vaga ideia de quem quero ser e onde quero estar; e, no meio-tempo entre esses dois momentos, vou fingindo que tudo vai bem enquanto trabalho durante o dia, estudo da noite até a madrugada, faço todo tipo de aula experimental, me voluntario na esperança de ser útil para o meu entorno — e oculto minhas questões mais profundas com visitas a barzinhos, saídas com amigos de toda tribo e sexo com estranhos que não têm interesse algum em saber de nada disso que acabei de falar.

“Como te conto, menina, em 140 caracteres ou em 1 hora de conversa de bar sobre tudo o que eu fui e ainda serei?”

Tenho vinte e poucos anos. Tenho “todo o tempo do mundo”, “nada a perder” e “1001 possibilidades” para ser quem sou.

Mas também já não tenho 15 anos; e alguns espaços para sonhar como que passam a se estreitar depois disso. Perdemos em sonhos e planos e versões mais do que em tempo. De quantos de nós abrimos mão para nos tornar quem efetivamente somos?

Os anos vão se afunilando pelas escolhas à frente, e constantemente me pergunto em que momento o cronômetro começou a soar sem que eu me desse conta — em que momento esse tique-taque do relógio se tornou ensurdecedor; em que momento a crise da adultez se fez insuportavelmente presente; em que momento chegou a hora de decidir todas as decisões.

E talvez a única esperança de atenuar essa angústia de ser resida na cansativa-exaustiva-repetitiva-perspectiva de viver cada-hora-das-minhas-24-horas-tendo-vinte-e-poucos-anos.

“Como seria a sua descrição em um aplicativo de relacionamentos?”

“Menina, acho que vamos precisar de mais uma cerveja —

é longa a crise da adultez.”

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Clara Suit

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando