Carta I

Bogotá, Colômbia.

Clara Suit
5 min readApr 25, 2023

[meu bem,] Sempre tive um carinho pelo gênero epistolar. Sinto que, ao escrever para um destinatário em especial (em vez de para o “nada”), o ato da escrita se faz menos solitário — mesmo que, na prática, permaneça essencialmente individual.

Embora exista algo de reconfortante na ausência de um julgamento externo, vejo que a escrita (dentre todas as artes) é a que mais parece dar notícias da nossa própria e inexorável solidão. E, como que para compensar o narcisismo do seu fazer, não raro o escritor se esconde por detrás de um Superego sabotador — o que há de ser um intermediário muitíssimo pior entre o Outro aterrorizador e a solidão-em-si-mesma. O julgamento interno é uma espécie de solidão mais cruel.

Há de se ter algo de desequilíbrio do juízo [ou, quem sabe, de equilíbrio perfeito?] para ter a escrita como arte vital, sem sucumbir.

Se escrevo para alguém, vivencio a ilusão de tê-lo à minha frente; um silencioso interlocutor para balancear a solidão narcísica. Comunico para o Outro-que-reside-em-mim — em vez de apenas para mim mesma.

Enfim — não sei se fiz sentido algum em nada do que acabei de dizer. Escrever para si, para o Outro, para o Mundo [que seja] não deixa qualquer garantia de assertividade na comunicação (se é que a escrita, enquanto arte, se propõe a isso).

De toda sorte — sigamos em frente.

[meu bem,] Viajar é um exercício constante para a atitude introvertida.

Colocar-se, deliberadamente, em contato com outra cultura significa abrir mão do conforto de um mundo exterior [aparentemente] conhecido — e, portanto, para o neurótico, “sob controle”. Perde-se a referência basal dos sentidos; os sons, cheiros, cores, gostos, hábitos e trejeitos — todos informam a respeito de um novo incógnito, que demanda toda uma recriação de ajustamentos psíquicos. É tanto terapêutico quanto cansativo ver-se em expansão adaptativa de consciência a todo instante.

Creio que um par de semanas deva ser suficiente para que qualquer um sinta falta da sua própria cama — e do seu próprio banheiro.

Tudo por aqui me lembra você. A natureza avassaladora das montanhas, pintadas com todos os tons de verde que existem; o cheiro impressionante do café; a aguardente de anis que muda sutilmente a cada região [sinto que você gostaria de prová-las todas]. A comida de rua [meu deus, a comida de rua!], os mercados de bairro, as barraquinhas de frutas coloridas… Me apaixonei à primeira mordida por absolutamente tudo o que comi. A arte, as pessoas, a política —é toda uma profusão de histórias compiladas, sobrepostas, emaranhadas; a respeito de tudo o que há de mais lindo e mais difícil nessa humanidade que caminha sobre a terra.

É o paraíso de qualquer artista.

Sei que você ainda não terminou de ler “Cem Anos de Solidão”. Pois não lhe anteciparei nada. Direi apenas que o realismo mágico de Gabo é a forma mais fidedigna de retratar este país — que é tanto real, quanto mágico.

[meu bem,] Caminhei, ontem à noite, pela Plaza de Bolívar, enquanto tomava um canelazo — espécie de drink quente à base de água, açúcar, aguardiente, limão e canela (e qualquer outra fruta cítrica que estiver à mão). Havíamos passado a tarde vendo os trabalhos de Botero e faziam 8 graus — temperatura absurda para qualquer soteropolitano. Cada centímetro da minha pele se arrepiava com o vento, meus joelhos doíam de frio e ainda sentia o corpo pesado depois de horas a fio sentada no ônibus para Bogotá (havíamos passado o dia anterior em um povoado próximo chamado Villa de Leyva, que só pode ser descrito como um conto de fadas em si mesmo).

Ao mesmo tempo, sentia meus olhos (já naturalmente esbugalhados) arregalados de querer apreender tudo ao mesmo tempo; as maçãs do rosto doídas de andar sorrindo por aí murmurando muchas gracias, muy amable, que rico, que lindo todo; a barriga cheia com o ajiaco, os patacones e o suco de zapote que tomamos em La Perserverancia, à hora do almoço.

Sentia, em suma, esse cansaço alegre dos viajantes: de andar de um lado a outro em contato pleno com o mundo, expandindo-se a cada instante com o novo, o incerto — o delicioso e aterrorizante desconhecido. Sim, é isto — estava feliz e cansada.

Enquanto olhava as luzes da praça com meu canelazo, pensei em você — e em nós dois. Pensei nesses últimos meses ao seu lado, nas muitas reinvenções que assistimos enquanto relação ao longo desse tempo. Acho o máximo essa experiência do Amor em criar-se a partir do encontro de duas totalidades (completas em si), que escolhem, de livre e espontânea vontade, compartilhar os caminhos incertos por este mundo. É um privilégio conhecer o Amor sob este olhar.

Pensei, por fim, nesse Outro-seu, Outro-nosso, que habita em mim e para o qual hoje escrevo — em mais uma tentativa vã de expressar um tanto do Mundo pelos meus olhos, na linguagem que melhor me coube nessa existência: essa intersecção meio bamba entre a escrita, a Psicologia, e o meu próprio psiquismo. Com frequência, pensar sobre nós dois me remete a esse lugar que é, efetivamente, o melhor que tenho em mim.

[E que bonito é dividir a vida com alguém que te remete ao melhor que existe em você.]

Seria o Amor, portanto, um atravessamento do desejo em compartilhar grandes momentos e pequeníssimos instantes? Esses — que fazem a existência ter mais sentido em meio à nossa irremediável solidão de ser.

Tal qual tomar uma bebida quente em meio ao frio estrangeiro — rodeada das luzes rarefeitas da cidade, com uma felicidade nômade percorrendo os sentidos feito eletricidade.

[meu bem,] Não desejo delongar-me ou fazer-me ainda mais psicanalítica do que já fui ao longo desta carta [este flerte existencialista freudiano pode realmente não ter sentido algum].

Creio que o que quero dizer é que pensei (e penso) em ti. Penso em nós.

E que, ao escrever para você, encontro conforto em dividir a solidão da escrita [e da existência — será que seriam ambas dois lados de uma mesma moeda?] com a parte tua que guardo em mim. Espero que não se importe que eu a leve comigo nessas aventuras por este mundo.

Afinal — ainda há muitas por viver.

“Amor, será dar de presente ao outro a própria solidão? Pois é a coisa mais última que se pode dar de si.” (Clarice Lispector)

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Clara Suit

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando