Carta a um coração partido

Ou: “Considerações sobre o Amor e a Individuação”.

Clara Suit
5 min readSep 1, 2022
Disponível aqui.

Meu caro amigo de além-mar,

Você me conta que teve o seu coração partido — mais uma vez.

Seu sentimento é mais do que compreensível. Por quantas vezes aconteça, o aperto de perder alguém que um dia foi um grande amor é sempre único em si. Afinal de contas, se a cada paixão idealizamos e projetamos tal qual da “primeira vez”, nas rupturas tampouco haveria de ser diferente — em ambos os casos, acabamos denunciando os nossos complexos todinhos.

E nunca se torna mais fácil ter o coração partido.

Parece ser mais doído ainda quando é a vida a que não acompanha o sentimento. Os mitos, contos de fada e filmes da Disney muito falam sobre a jornada (quase heroica) de encontrar um grande amor, mas pouco narram do que acontece depois, não é mesmo? Embora a parte do “encontrar” um amor não seja lá tão simples (especialmente nessa contemporaneidade de afetos desencontrados e temerosos), considero que o desafio maior resida, de fato, depois do felizes-para-sempre. E, por maior que seja o sentimento entre as pessoas, nem sempre ele (por si só) é suficiente frente aos inúmeros rumos pelos quais a vida se encarrega de nos levar.

O que lhe aconteceu, amigo, é o que acontece à maioria. Não sei se a percepção de que a sua dor é muito pouco original lhe traz conforto ou se faz com que se sinta diminuído de alguma forma. No segundo caso — realmente não é a intenção. Espero que encontre na coletividade um quê de acolhimento, ao dar-se conta de que é possível, sim, juntar os cacos de um coração partido. Todos o fizemos ou teremos de fazê-lo um dia — e, bem, as músicas pop se encarregaram de exemplificar algumas muitas histórias de superação. Risos.

Não sei também, amigo, se você acredita em algo de “destino”, “almas gêmeas” e outros tantos ideais correlatos que tendemos a repetir por aí, sob a égide arquetípica do amor romântico. Confesso que, por mais cientista que eu mesma pretenda ser, acolho em mim uma romântica incurável (e meio ingênua), que tem por estruturante que, quando duas pessoas precisam se encontrar — elas se encontram. E permanecem juntas pelo tempo que fizer sentido, nem mais, nem menos. “Infinito enquanto dure”, diz o Soneto da Fidelidade. E, oras, da mesma forma que se encontram, podem se reencontrar um dia. Faz sentido? Espero que sim.

Por outro lado, não gostaria que esse pensamento — essa curta ponta de esperança no amor — o privasse de seguir em frente.

Você precisa, amigo, seguir.

Nada dói mais do que tentar conciliar a já incerta jornada que nos cabe — única, individual, coesa em si própria — com o caminho, ainda mais incerto, que pertence ao outro. Pensando pela Psicologia Analítica, diríamos que é preciso, no processo de se individuar, honrar o nosso encontro pessoal com o si-mesmo. Não podemos ter a pretensão perversa de que estenderemos a mão para o outro e, assim, caminharemos ao seu lado para um mesmo lugar (olha aí a fantasia do felizes para sempre de novo!). Esse mesmo lugar não existe — nem tem como existir, são infinitas as trilhas da humanidade. Só a racionalidade neurótica, colonizada e capitalista poderia pleitear a uniformidade da individuação.

Você precisa seguir o seu caminho, ele precisará seguir o dele. Como bem diz a Oração da Gestalt, se voltarem a se encontrar, pois, que lindo; se não, não há nada a ser feito. As únicas expectativas que podemos esperar atender são as nossas próprias — e olhe lá!, que não existe nada mais enganador que o Ego querendo assumir o comando da psique e achando que dela é dono. Freud diz que não somos senhores nem na nossa própria casa (a psique), e o amor nos comprova que, de fato, não há nada mais verdadeiro.

Ao seguir em frente (e apenas assim), será possível abrir espaço para o novo — o que quer que seja e que você deseje: um novo amor, um novo par de Havaianas ou, mesmo, um pet. Há de se confiar no próprio direcionamento da energia psíquica para lhe guiar pelos remendos do coração.

Você, talvez, haveria de me perguntar: caso me veja “pronto” para viver algo novo com alguém, como saberei que é seguro levar o caso adiante?

Começaria lhe dizendo, amigo, que me faço essa pergunta com alguma frequência. A uma única resposta — não cheguei.

Das minhas vãs elucubrações, só posso lhe dizer que nunca estaremos prontos e que não há segurança alguma no viver — como poderia, então, haver segurança no amor? Estaremos sempre sujeitos aos arranhões de uma queda — da mesma forma que ao sentimento impressionante de voar. E, entre voar e cair, existe um espectro infinito de tudo o que é a experiência humana, à qual só teremos acesso ao escolher, de fato, pular do penhasco.

Amigo, me perdoe pelo simbolismo dramático e barato. Na tentativa de lhe confortar, talvez eu mesma tenha me feito tão original quanto uma comédia romântica de Hollywood.

Mas saiba que o amor nada mais é do que quando duas pessoas se encontram para, juntas, chegar ao máximo de si que é possível ser. Pois é a individuação própria a cada um — mas nunca solitária. Quando sentir que, ao seu lado, existe alguém que vem para vivenciar, em conjunto, a liberdade de vir-a-ser quem se é; e para compartilhar a incertidumbre da vida com algo de graça e humor— pois eis aí alguém com quem vale a pena saltar.

Em um dia menos otimista do que este, perguntei a uma amiga — em tom mui amargurado — se ela acreditava no amor. Será que isso tudo que descrevi sequer é possível, verdadeiramente? Ou estaríamos todos simplesmente fadados a uma vida de quedas e arranhões patrocinados por repetições arquetípicas? O niilismo parece ter certo sentido.

Ela me respondeu — com a paciência do mundo inteiro — que sim, que acreditava (e muito!) no amor, e por uma simples razão: por ela mesma já haver, antes, amado.

Amigo, meu coração derreteu-se feito manteiga quando ouvi isso. Veja que cirúrgico, que bonito: crer no amor porque, antes de mais nada, nos sabemos capazes de amar; outros e a nós mesmos, com toda a sincera imperfeição de seres humanos limitados que nos coube ser.

Eu desejo, amigo, com todo o carinho do mundo, que ao se reencontrar com o amor você possa, antes, achar em si próprio a evidência de amar.

Finalizo esta carta dizendo que, por ora, creio que seria de bom tom e de bom gosto (pessoalmente falando, é claro) convidar um par de amigos para jogar conversa fora, tomando umas cidras, à beira do Danúbio. É sábado quando lhe escrevo, e penso que seja o dia perfeito para atenuar um coração partido ao lado de uns quantos companheiros de jornada.

Afinal, ninguém é obrigado a, todos os dias, se enveredar pela individuação. A anestesia temporária é necessária para encarar o que quer que venha por aí.

(e, se você sair por aí dizendo que falei isso, eu mesma apareço em Budapeste pra te dar uns tabefes)

Um abracinho forte, diretamente das terras tropicais,

Para Vitor, meu revisor oficial de “além-mar”. Nunca esqueça que Budapeste é pequena para tudo que você é — e ainda será. É um presente ser sua amiga e poder acompanhar a sua jornada daqui.

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Clara Suit

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando