A última carta de amor

Clara Suit
6 min readMay 10, 2022

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Na manhã em que soube que você se foi, um homem foi baleado no Rio Vermelho.

Fazia menos de um mês desde que uma amiga em comum me contara do seu câncer, e pouco mais de um ano desde o diagnóstico oficial. Naquele então, você se recuperava do seu terceiro transplante de medula e havia a esperança de que isso te ajudasse a recuperar algo da sua imunidade já rarefeita.

Nunca, em um milhão de anos, imaginei que você morreria.

É claro que fui imediatamente tomada pelo choque. Reservado e resmungão como você sempre foi, uma das suas escolhas para esse último ano foi de se encerrar em si e transparecer o mínimo possível, mesmo para familiares e amigos mais próximos. E, assim, a todos os outros deixou-nos imersos em um sentimento terrível de surpresa e incredulidade frente à notícia recebida em tempos diferentes.

Lhe escrevo na esperança de que, ao lançar estas palavras para o universo, você consiga encontrá-las de onde quer que esteja.

A escrita sempre foi, afinal de contas, a nossa linguagem e modus operandi de afeto, não é mesmo? Foram inúmeras cartas de amor escritas nas nossas caligrafias adolescentes, manifestando sentimentos, desejos e uma aparente invencibilidade perante o mundo. Você sempre demonstrou tamanho interesse por tudo o que eu escrevia que, ao seu lado, cheguei a crer que poderia fazer uma carreira disso.

Nem invencíveis, nem escritores o destino se encarregaria de nos fazer.

Éramos apenas crianças quando nos conhecemos. Eu tinha catorze e você treze anos, e amigos em comum haviam teatralmente orquestrado aquele encontro primeiro, em uma pizzaria do mesmo Rio Vermelho do homem baleado de que lhe falei a princípio. A escolha da pizzaria foi um erro tremendo para a ocasião, pois eu estava em tal estado de nervos que vomitei as únicas duas fatias que consegui comer.

Isso pouco lhe importou. Ignorante do acontecido e perscrutando-me com atentos olhos verdes durante toda a noite, terminou por me acompanhar ao lado de fora, enquanto eu esperava pela carona do meu pai. Era a última sexta-feira de Março de 2012, e Salvador sempre teve seu jeito de demarcar a chegada do Outono através do mormaço, da umidade excessiva e de exageradas precipitações vindas dos céus.

Debaixo da chuva que caía, você me beijou com todo o carinho e cuidado que a nossa juventude permitia e pedia. Dali a um mês, em um quente pôr-do-sol soteropolitano, você colocou um singelo anelzinho prateado no meu dedo e me chamou de namorada.

Você me permitiu viver o filme de romance que todo adolescente da nossa geração sonharia. Sinto que esse era um dos nossos acordos silenciosos: o de experimentar, juntos, tudo aquilo que sempre assistimos outros encenarem. As muitas cartas de amor que nos escrevemos agora repousam no meu colo como a memória de um tempo repleto de inocência, em que, errando, aprendemos a amar como quem aprende a fazer mímicas dos outros.

E ambos erramos muito — talvez eu mais do que você. Dizer que não existiram desafetos entre nós seria injusto com a nossa memória. Erramos. Errei. O suficiente para que já não nos falássemos nesses últimos anos, e me pergunto se, hoje em dia, ainda gostaríamos das pessoas que nos tornamos. Tanta coisa parece ter mudado. Seus amigos me contam, até, que você gostava muito de ir à praia nesse último ano (era uma das nossas dissidências, lembra?). Será que poderíamos ser amigos, se um par ou um trio de elementos tivesse sido diferente? O subjuntivo é um tempo tão infinito quanto é vã a tentativa de confirmá-lo.

Não obstantes os nossos erros, você ainda vive em mim como o menino da pizzaria que me pareceu tão interessante que me fez vomitar de nervoso por três encontros consecutivos. Que me ensinou o pouco que sei de violão — pacientemente e sem demonstrar qualquer consciência do fato de que eu seria para sempre uma negação em aprender instrumentos. Que me fez provar pela primeira vez um milkshake de morango e com quem primeiro me arrisquei a cozinhar alguma coisa. Seus pais — sempre tão bons comigo — gostavam de fazer comida italiana nos finais de semana e, enquanto isso, nós brincávamos de ensinar o meu nome para a sua irmã bebê. Hoje, ela já é uma adolescente — quase da idade que tínhamos quando nos conhecemos —, provavelmente não se lembra de mim e não consigo nem imaginar como deve estar encarando a sua perda. Você deixa atrás de si um vazio para tantas pessoas. É um sinal de muita vida vivida, mesmo no pouco tempo que lhe coube.

Carrego em mim a sua herança como o responsável pelas minhas primeiras vezes. O primeiro que acessou o meu corpo, os meus planos, a minha família, a minha rotina: todas as inteirezas possíveis a uma menina de catorze anos — e, reciprocamente, você me permitiu acessar as suas. A primeira vez que dormi fora veio por puro esquecimento dos meus pais de me buscarem na sua casa. Adormecemos inocentemente nos braços um do outro e acordamos às cinco da manhã, assustados, sabendo que em casa me esperaria uma sabatina talvez desmerecida.

Se me esforço, lembro de como seus dedos eram quadrados nas pontas, do cheiro do seu perfume (que você sempre comprava igual porque sabia que, para mim, aquele era o seu cheiro) e da sensação de beijar a sua boca, rachada pelos remédios para acne. Do oceano dos seus olhos verdes, que você dizia que mudavam de cor de acordo com seu humor.

E agora você me deixa para lembrar cada uma das nossas primeiras vezes sozinha, cúmplice solitária das nossas memórias construídas em conjunto.

Por que lhe coube tão pouco tempo e a outros cabe tanto? A cena do homem baleado no Rio Vermelho naquela manhã me tirou apenas o suficiente do meu estupor para pensar sobre a óbvia finitude da vida, à mercê da nossa própria natureza; da imaturidade e violência humanas; do destino — ou das crenças pessoais de cada um. Em um curtíssimo instante, perdemos para o nosso corpo a essência de quem fomos e do que um dia poderíamos ser.

Existe tanto, tanto, que gostaria de te dizer. A medida que escrevo vou lembrando de mais e mais coisas. Acho que, no fundo, criei um futuro cabível na minha cabeça — em que você melhoraria o suficiente para que eu pudesse visitar, levar flores que você provavelmente odiaria e, mesmo que por alguns breves minutos, poder conversar sobre quem nos tornamos depois de nós dois.

Poderia dizer que encontro conforto ao pensar que não houve sofrimento na sua partida, mas a verdade é que — e creio que, depois de tudo, lhe devo apenas a verdade — o que predomina em mim é uma irritação teimosa com o universo, pela forma aleatória como tece o fio da vida. Teimosa, você lembraria, sempre fui.

Esta talvez seja a minha última carta de amor para você.

Não esperava escrevê-la, muito menos desta forma ou por estas razões.

Fico a imaginar se — como o menino de treze anos cheio de afeição que um dia você foi — você ainda seria capaz de apreciá-la, como esta demonstração última dos nossos afetos, e como apreciou tantos outros garranchos meus, enquanto menina de catorze anos.

No fundo no fundo, acho que ela — a menina de catorze anos — só queria que você também pudesse lê-la mais uma vez. Observar-me de esguelha a medida que lia. Tecer algumas notas sinceras como lhe eram próprias. Caçoar de alguns dos nossos clichês. E sorrir de canto, como quem ri consigo mesmo de uma travessura em comum.

Do jeito que você costumava sorrir.

Em memória de Lucas, 03/05/2022.

Disponível aqui.

“Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.”

(Álvaro de Campos)

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Clara Suit

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando