A terapeuta da minha mãe

Clara Suit
5 min readJul 27, 2022

--

Disponível aqui.

Ela se senta bem na minha frente: pequenina, óculos maiores do que o rosto, mãos repousando nos joelhos. Observa com escrutínio curioso toda a sala de aula — repleta de psicoterapeutas em formação — e em nenhum momento se demora sobre o meu rosto.

Eu sei quem ela é, ela não sabe quem eu sou. A terapeuta da minha mãe não é nada do que eu imaginava.

Não que eu houvesse me delongado nesse pensamento anteriormente — é só no tê-la à minha frente que esse personagem entra em cena na minha cabeça.

E, disso, surgem diversas questões imediatas de suma importância:

Quantos anos ela tem? Afinal, ela tem de ser mais velha que a minha mãe.

Que lugares ela costuma frequentar? Ora, não podem ser os mesmos nossos, nunca a vi antes por aí!

Ela já viu minha mãe chorar? Por que?

Uma urgente, que automaticamente denuncia Édipo e seus complexos irmãos: essa mulher conhece o meu pai mais do que eu?

Pois bem. Uma série de questionamentos infantis que, na verdade na verdade, não detêm importância alguma; e automaticamente me deslocam da persona de estudante que até então desempenhava — futura psicóloga, profissional séria que tudo comporta — à persona de filha.

Talvez a mais premente de todas seja: o que exatamente ela sabe sobre mim?

Quantos dos meus complexos adentraram o setting terapêutico de outra terapeuta que não a minha própria terapeuta?

E, ora, não qualquer terapeuta. A terapeuta da minha mãe!, exclamo em pensamento, exasperada.

Me sinto nua e sem qualquer brecha psíquica aparente para me arroupar confortavelmente de volta com a minha persona cabível.

De súbito, me torno extremamente ciente da pantalona bordada que levo no corpo; das minhas pernas cruzadas em cima da cadeira feito criança; da bagunça das minhas anotações que fazem sentido apenas para mim mesma. Não sei nem nunca saberei o que minha mãe teria lhe dito a meu respeito, mas não consigo frear o impulso de causar uma boa impressão a essa mulher que, durante três horas, ocupa a posição de me guiar pelos caminhos incertos do fazer psicoterápico.

Me endireito na cadeira (minha mãe é campeã em ralhar comigo sobre a postura) e viro a página do caderno, a todo momento mantendo contato visual para demonstrar interesse na aula e no que quer que a terapeuta da minha mãe esteja falando. Será que ela conseguiu perceber a multiplicidade de pensamentos que se passaram pela minha cabeça nesses 15 segundos? Será que enrubesci? Será que me denunciei? Devo falar com ela? Devo sair da sala?

Será que telefono para a minha mãe?

Contra todas as expectativas que poderia ter fantasiado sobre este momento, minha reação imediata à terapeuta da minha mãe foi de transferência total e absoluta da minha própria mãe. Valha, como é forte o complexo.

Sobrevivo às três horas de aula em discrição, tecendo pouquíssimos comentários (essencialmente sobre o café ralo do coffee break) para não ser reconhecida. Parte da minha mente está na aula, parte está no que dizer à minha mãe ao chegar em casa. Como boa mãe — e sendo, ela mesma, psicóloga clínica de longa data — perguntará com genuíno interesse como foi, com quem foi, qual foi o assunto.

A resposta sincera, naturalmente, seria: “Tive aula com sua terapeuta e passei a tarde inteira pensando que a qualquer momento ela daria um caso clínico como exemplo e seria o seu.”

Mas, sinceridade genuína — só na literatura.

Quando o relógio de parede anuncia as dezoito horas, recolho minhas coisas e tento sair o mais rápido possível sem ser percebida. Hesito pelo tempo de 1 milésimo de segundo à porta, pensando se deveria dizer algo à mulher pequenina. Opto por murmurar um obrigada-pela-aula simpático e me lançar, apressada, no trajeto de volta para casa.

Nos 15 minutos de caminhada entre a clínica e o meu prédio, sigo pensando no que dizer, no que dizer, no que dizer. Antes que me dê conta, já estou na porta do apartamento com as chaves na mão, sem qualquer resposta concreta.

Como nada pode ser fácil, minha mãe já me espera sentada no sofá da sala, lendo um livro de Fiorini — “Teoria e Técnica de Psicoterapias”. Já mencionei como é curioso habitar um universo povoado por psicólogos desde que me entendo por gente?

É imediato. No segundo em que entro em casa, minha mãe levanta os olhos (por trás dos óculos de terapeuta que me analisaram a vida inteira) e pergunta, despretensiosamente:

“Cae, como foi a aula hoje?

Se lhe disser a verdade, talvez isso prejudique a tão cara transferência; a relação de confiança e abertura imbuídas no processo terapêutico da minha mãe. Se mentir, ela vai saber instantaneamente que minto, sente de longe o cheiro das minhas pouquíssimas mentiras ao longo de vinte e quatro anos. E agora? E agora?

Engulo em seco. Fecho a porta detrás de mim, tiro os sapatos, desenlaço a mochila dos ombros. Tento transparecer absoluta normalidade ao dizer:

“Foi ótimo, mami. Tivemos um módulo bastante esclarecedor, inteirinho sobre Complexos. Acho que preciso levar algumas coisas para a terapia.”

E isso parece satisfazê-la. Porque é a verdade, afinal de contas.

Minha mãe sorri com a gentileza elegantemente en passant que lhe é própria, retorna o olhar para seu livro e murmura um: “Que maravilha! Formação é assim mesmo, mexe com várias questões nossas — por isso a autoanálise é importante.”

Assinto e sorrio amareladamente de volta, ciente de que ela já não presta mais atenção à minha presença. Sigo pelo corredor e fecho a porta do quarto atrás de mim.

Encostada na porta, exalo de uma vez o ar contido e reflito sobre a acertada decisão de manter em segredo o encontro com a terapeuta da minha mãe. Minha mãe não sabe, a terapeuta não sabe. Tudo certo. Ninguém precisa saber. Levarei o segredo para o túmulo — e, é claro, para a minha terapeuta; a próxima consulta vai valer cada centavo dos 60 minutos.

Eu não sei vocês, mas prefiro a minha mãe terapeutizada.

--

--

Clara Suit

latinoamericana, psicóloga, analista junguiana, feminista e tipo 1 do eneagrama. escrevo sobre coisas que ainda estou elaborando